quinta-feira, 3 de abril de 2008

Machado de Assis (5)


Palestra de Daniel Piza sobre Machado de Assis na Universidade Sorbonne - Paris IV, em 18 de março de 2008.
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MACHADO DE ASSIS – Um Gênio Brasileiro

Bom dia,

Estou muito feliz de estar aqui em Paris e na Sorbonne para falar sobre Machado de Assis, a meu ver um dos dois maiores escritores brasileiros, ao lado de Guimarães Rosa, que curiosamente nasceu no mesmo ano da morte de Machado, em 1908.

Alguns críticos literários, como o americano Harold Bloom, disseram que Machado é uma espécie de “milagre”, um gênio nascido de modo improvável num Brasil extremamente subdesenvolvido do século XIX. O escritor mexicano Carlos Fuentes analisou sua relação com a obra de Cervantes e disse que ele é o maior escritor da América Latina daquele século. Minha intenção, aqui, é mostrar que Machado pode ser um “milagre latino-americano”, mas que também é um produto e profundo observador da vida brasileira de sua época, na qual examinou questões universais como a vaidade, o ciúme, a confusão entre afetos e interesses, a relação entre classes. O gênio é o autor de uma obra de gênio; não é um tipo de pessoa. Cada leitor dos romances e contos de Machado conhece um pouco mais do Rio de Janeiro da monarquia e, ao mesmo tempo, um pouco mais de si mesmo.

Machado algumas vezes é descrito como um escritor “mulato”, neto de ex-escravo com mulher branca. Ele não gostava da palavra “mulato”, porque uma derivação de “mula”, um animal escravo... Machado via a si mesmo como um escritor herdeiro da longa tradição ocidental. Ele leu a Bíblia, Shakespeare, Cervantes, Camões, o teatro francês (Molière, especialmente), a filosofia (Diderot, Voltaire, Schopenhauer), o romance britânico (Defoe, Fielding, Dickens, Sterne), a poesia romântica (Victor Hugo), Poe, Xavier de Maistre. E transfigurou essas leituras em seu meio social, onde a questão da escravidão era uma das fundamentais.

Em certos aspectos, ele foi privilegiado, porque tinha pais que sabiam ler, coisa rara nas estatísticas do período, e aprendeu francês antes dos 15 anos, possivelmente na casa onde seus pais trabalhavam. Mas viveu uma infância pobre e triste, pois sua mãe morreu quando ele tinha dez anos; e cinco anos mais tarde ele deixou o pai e foi tentar a vida no centro da cidade. Seu primeiro emprego sério foi numa tipografia, na qual seu chefe, Paula Brito, o acolheu bem. Logo ele começou a publicar poemas, sempre românticos, incluindo dois ou três em louvor ao imperador brasileiro, Dom Pedro II. No ano seguinte ele começou a trabalhar na Imprensa Nacional, e desse momento até sua morte ele teve uma ascensão contínua e gradual nas carreiras de homem de letras e funcionário público.

Ele era membro de uma minoria, naturalmente, mas não era o único “mulato” ou descendente de escravos a conviver com a “alta sociedade”. Machado foi amigo de muitos escritores e políticos, e sua geração testemunhou o aparecimento de grandes obras literárias na segunda metade do século XIX, de autores como Manuel Antonio de Almeida (seu chefe na Imprensa Nacional), José de Alencar, Castro Alves, Raul Pompéia, Euclides da Cunha e outros. Naquele pequeno Rio de Janeiro, havia uma concentração geográfica de inteligência provavelmente única na história do Brasil.

Além disso, o Rio de Janeiro e o Brasil de sua época tinham outra característica cara aos grandes escritores: eles se transformavam rapidamente, criando uma justaposição de tempos muito complexa. O Rio era uma simples vila quando Machado nasceu em 1839 – não tinha sistema sanitário, por exemplo – e ele o deixou em 1908 como uma cidade quase moderna. Machado viu o surgimento do telégrafo, da iluminação elétrica, do bonde elétrico e da ferrovia, a multiplicação dos jornais e das fotografias, a consolidação de uma vida comercial e cultural ao redor da corte. E ele mergulhou profundamente nessa vida. Havia ali 200 espetáculos por ano, como peças e óperas, e Machado teria se apaixonado por atrizes e cantoras. Fez traduções e adaptações, escreveu um libreto, foi crítico e censor do Conservatório Dramático, diretor do Clube Beethoven – e a cidade era conhecida como “Pianópolis”, tal o número de pianos espalhados por ela.

Machado participava, enfim, com intensidade dessa vida social do Segundo Reinado e foi até condecorado com a Ordem da Rosa. Era também um jornalista muito ativo. Como cronista do Diário do Rio de Janeiro, escrevia sobre o Senado, admirando alguns e ironizando outros. Nesse período foi descrito como um jovem feliz e espirituoso, que falava e brincava muito com seus amigos. A imagem de Machado como um homem recluso e melancólico é uma imagem de seus últimos anos de vida, especialmente depois da morte de sua esposa, Carolina.

Durante a década de 1870, porém, as coisas começaram a mudar mais fortemente. Depois da Guerra do Paraguai, ainda que o Brasil a tenha vencido, os movimentos contra a monarquia se intensificaram, especialmente no meio militar, onde as idéias de Auguste Comte se tornavam populares. O debate político estava instalado, e também o estético. Em 1875, um grande amigo de Machado, Joaquim Nabuco, que mais tarde seria um dos maiores defensores da abolição, fez uma crítica à obra do grande ídolo de Machado, José de Alencar. Nabuco atacou o “nacionalismo romântico” de Alencar e defendeu uma literatura mais cosmopolita e realista. Curiosamente, dois anos antes dessa polêmica, Machado escreveu um ensaio muito importante sobre o tema, O Instinto de Nacionalidade. Para ele, a literatura brasileira não deveria ser nem uma ampliação da “cor local” nem uma imitação das modas européias. Um escritor pode escrever sobre coisas de outros país e de outra época e ao mesmo tempo ter um “certo sentimento íntimo” que traduz sua nacionalidade. Machado citou o caso de Shakespeare.

E essa seria a face mais evidente de sua própria literatura. Machado não usa os estereótipos brasileiros e seu estilo é original apesar das influências. Os primeiros contos e romances não traziam ainda essa independência, mas pouco a pouco ele construiu uma obra corajosa. Em Iaiá Garcia, seu quarto romance, de 1878, ele já mostrava menos moralismo e mais ironia nos destinos de seus personagens. No mesmo ano, Machado escreveu uma resenha do romance de Eça de Queirós, O Primo Basílio, e atacou a influência da obra de Émile Zola. Para ele, o naturalismo era vulgar e caricatural. Mas Machado tampouco estava seguro sobre sua obra.

Em 1879, ele sofreu uma crise de saúde e foi obrigado a ficar alguns meses internado numa clínica em Friburgo. Tinha problemas nos olhos e estava muito magro; não sabemos se a epilepsia era parte do problema, mas ele estava mal. Havia também uma crise em suas ilusões. O governo de Dom Pedro II era mais e mais criticado por problemas econômicos e pela demora na abolição. A idéia de uma monarquia constitucional e democrática no Brasil, que Machado e Nabuco admiravam na Inglaterra, parecia quase impossível. O republicanismo ganhava mais e mais adeptos, e o rei era satirizado na imprensa por sua indolência e indefinição. Esteticamente, Machado queria superar o dilema entre realismo e romantismo.

Em Friburgo ele dá seu grito de libertação. Ele decide escrever Memórias Póstumas de Brás Cubas, um livro com mais humor e pessimismo, narrado por um defunto que sonhava criar um emplastro para acabar com a hipocondria e lhe dar glória espiritual e material. Com uma técnica inspirada no Tristram Shandy de Laurence Sterne, mas muito mais divertida e breve, ele conta sua história com capítulos curtos, ziguezagues, conversas, alegorias, metalinguagem. Há episódios que podem ser isolados como crônicas ou contos; há metáforas que parecem vindas da poesia. Essa mistura de registros e gêneros era absolutamente inédita e tem um caráter fundador na prosa brasileira, por seu estilo colorido e coloquial. Machado sofreu uma transformação profunda.

Os contos que escreve nos anos 1880, também, adquirem mais atrevimento e criatividade. Ele faz diálogos como Diderot em Teoria do Medalhão, histórias pré-Kafka como O Alienista, fantásticas à la Poe como A Causa Secreta, investigações sobre arte e moral que remetem a Henry James como Trio em Lá Menor. Também suas crônicas do período são antológicas, ironizando a vida pública brasileira, na qual ele observava uma troca de grupos de poder sem uma mudança na estrutura da sociedade.

Machado acreditava ainda que a monarquia pudesse decretar a abolição e continuar viva. Mas, um ano depois da abolição em 1888, a República foi proclamada no Brasil. O impacto sobre ele, como sobre Nabuco, foi forte. Machado ficou sem escrever crônicas por dois anos. Ao mesmo tempo, trabalhou num romance que vinha sendo publicado em folhetim, Quincas Borba, sobre o herdeiro de um filósofo que enlouquece. Novamente, é um retrato de ilusões perdidas no período monarquista.

Mas sua energia não havia terminado. Em 1892, ele começou na Gazeta do Rio de Janeiro outra série de crônicas memorável sobre as farsas políticas e as novidades em sua cidade, como o bonde elétrico, a música de Wagner e a febre da Bolsa. Machado dizia adeus a seu século; dizia estar cansado, mas seus textos continuavam astuciosos. Passa então a escrever Dom Casmurro, livro publicado em 1900 e considerado sua obra-prima. Para ele, seria seu último livro. Ele o escreve lentamente, mas com uma riqueza nova de detalhes e filigranas.

Dom Casmurro foi reduzido a uma discussão: Capitu traiu seu marido, Bentinho, com seu amigo, Escobar, ou não? Machado não o afirma nem descreve; logo, sempre se tratará de uma especulação. O romance é maior e mais sutil do que uma charada. Tem um triângulo amoroso, como em quase todas as histórias de Machado. A diferença está na maneira como Bentinho costura suas memórias. Ele é um narrador complexo, que escapa à confissão de seus sentimentos, sentimentos que tenta compreender e não compreende. Não sabe se Capitu o enganou ou se ele enganou a si mesmo. Não pode condená-la não porque não viu sua traição, mas porque ele próprio tinha grande afeição por Escobar. E tinha sido graças aos dois que tinha escapado do seminário católico – que sua mãe queria obrigá-lo a fazer – e se casado com Capitu. Há uma ambivalência no livro que não se pode resolver.

O naufrágio de Bentinho é também o naufrágio de uma época – romântica, iludida, patética, ao mesmo tempo de maior discrição e respeito. A nova época não era necessariamente melhor... O tema estará presente em seus dois últimos romances, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Em Esaú e Jacó os dois irmãos, Pedro e Paulo, um monarquista, o outro republicano, se apaixonam pela mesma jovem, Flora. Ela oscila perpetuamente entre ambos, pois seu ideal é um homem imaginário que é uma fusão das qualidades de Pedro e de Paulo. Ao final, os irmãos se revelam bem mais parecidos entre si, e Flora não fica com nenhum. Em Memorial de Aires o memorialista, um diplomata, testemunha a relação entre um jovem casal e um velho casal durante a passagem da monarquia à república. O velho casal, Aguiar e Dona Carmo, é inspirado em Machado e Carolina. Eles tentam compreender a nova geração, mas não conseguem...

Machado sofreu muito com a morte de sua mulher em 1904. Carolina era culta e forte e durante 35 anos o ajudou com os remédios e os textos. Depois de sua morte, Machado ficou com a saúde ainda pior. Tinha convulsões, insônias, nevrites, um câncer na boca. O consolo único era a amizade de alguns velhos amigos e os assuntos da Academia Brasileira de Letras, da qual era o presidente desde sua fundação em 1897.

Na noite de sua morte, perguntaram a ele se queria a presença de um padre. Ele recusou e disse: “Seria uma hipocrisia.”

Quando comecei a pesquisar para escrever sua biografia, Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro, publicada no Brasil em 2005, eu queria mudar algumas visões sobre ele. Por exemplo, um homem que recusa a extrema-unção é um crítico da religião e podemos ver isso em sua obra, não por acaso influenciada pela sátira iluminista. Os nomes dos seus personagens, por exemplo, são Bento (como o atual papa), Glória, Socorro, etc. Por outro lado, há no Brasil uma tradição sociológica que converteu Machado num crítico do capitalismo, termo que jamais empregou. Machado era um crítico da humanidade, acima de tudo; jamais defendeu uma classe social.

Mais importante ainda para uma biografia: sua vida não foi anódina, burocrática, como se dizia. Aquela foi uma época muito interessante e decisiva e ele mergulhou nela profundamente. As biografias clássicas mostram Machado como um homem individualista, um artista na torre de marfim. Não, ele não escreveu apenas sobre adultérios... Não, ele nem sempre foi um homem melancólico e insociável...

Havia também uma confusão entre suas idéias e a de seus personagens. Brás Cubas diz que não teve filhos, que não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. Mas Machado queria ter filhos, como diz em cartas e sugere em Memorial de Aires. Somente um homem que viveu uma vida intensa e que lhe dá valor pode sair de um meio modesto numa sociedade subdesenvolvida e chegar a ser o maior escritor de seu país.

Muito obrigado.

Fonte: http://www.danielpiza.com.br/interna.asp?texto=2312

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